29 julho 2012

..."PLAY IT SAM..."




CASABLANCA

Não era um bar de Kashbah, mas um café
em Leça da Palmeira (pequena vila ao norte
do país), a tua voz aqui me leva lá

O resto: é só mudar na gente aqui
a roupa ocidental para barba e burel,
vislumbrando punhal entre mil panos

O resto: é só virar a cor do espectro
para branco e cinzento - já agora
em lugar daquela mesa, organizar piano (em contraponto)

O resto: é só subir a temperatura
uns vinte graus (ou mais) disfarçar a ternura
como, há cinquenta anos, esses dois

O resto: é inventar em Leça da Palmeira,
no meio de nevoeiro tão imenso,
um olhar tenso a disfarçar-se brando
(um poço de desejo, e ventoinha em avião de espanto)

Nas mesas do café de Leça da Palmeira:
Casablanca voando, e à medida que o tempo
se desfaz imenso: um saxofone brando,

deixar junto do verso a promessa do nada
que não houve, mas se senta ao piano
repete, como em sonho, a mesma melodia

- traduzida em inglês: toca outra vez e outra,
que nem Kashbah aqui, mas bem podia
ser a tua voz (num registo final)

AnaLuísaAmaral









28 julho 2012

A CHAMA NA TUA FRONTE...



A chama na tua fronte
trazia confiante uma dor pura
íntima da luz e dos teus passos.

Com o rosto graduado de bênçãos
viste o que cresceu no sangue
e no poema

a medida remota de cada céu.

de: Vasco Ferreira Campos
[O CORAÇÃO SABE]




26 julho 2012

QUEM AMA A LIBERDADE CONHECE QUE É IDÊNTICA





Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-la não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas

António Ramos Rosa
[As espirais do silêncio]






24 julho 2012

ESTOU ESCONDIDO NA COR AMARGA...



estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que
o outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento

de: valter Hugo mãe




21 julho 2012

ESTAR SÓ É ESTAR NO ÍNTIMO DO MUNDO



entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa

"Poemas Inéditos"





20 julho 2012

O POEMA



UMA LIÇÃO DE DESENHO

O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

"Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!"

E eu digo-lhe:

"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.

Nizzar Qabbani 


Escritor sírio, considerado um dos maiores poetas árabes. Do amor e da política.Morreu em Londres onde vivia, aos 75 anos, em Maio de 1998. Notabilizou-se com obras eróticas que quebraram tradições literárias no Médio Oriente, pela defesa da emancipação das mulheres. As suas palavras ficaram imortalizadas nas canções da egípcia Umm Kulthoum e da libanesa Fairouz. Nacionalista convicto, foi extremamente crítico dos líderes árabes, sobretudo após as guerras contra Israel de 1948 e 1967, que contribuíram para o êxodo palestiniano. (in Público, 8 de Abril de 2002)

fonte: http://canaldepoesia.blogspot.pt/ 




19 julho 2012

EU CONHEÇO UMA MÚSICA FRÁGIL COMO A CHUVA



Eu conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto leio o que escrevi.

Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio, esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto, à espera que chovesse.

Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar não existe, ou não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar.

Jorge Fallorca
[Telhados de Vidro nº 11]

Fonte:  canaldepoesia.blogspot.pt/



16 julho 2012

NOTHING ELSE MATTERS


o video contém conteúdo de: Kontor New Media


NOTHING ELSE MATTERS

So close no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who you are
And nothing else matters...

Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
And nothing else matters...

Trust I seek, and I find in you
Every day for us something new
Open mind for a different view
And nothing else matters...

Never cared for what they do
Never cared for what they know
But I know...

Never cared for what they say
Never cared for games they play
Never cared for what they do
Never cared for what they know
And I know...

So close no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who you are
No, nothing else matters

Gregorian




14 julho 2012

HOMENAGEM


GUSTAV KLIMT
150º aniversário



once tragically lost in a fire in 1945
GOLDEN APPLE TREE has now been resurrected
and given new life by The Klimt Collection







althout more of the subject's form is visible than is usual in Klimt's portraits, 
it's still consumed by the brilliant coloration of the floral Oriental design








07 julho 2012

JARDIM DO MAR






Vi um jardim que se desenrolava
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.

Jardim de flores selvagens e duras
E cactos torcidos em mil dobras,
Caminhos de areia branca e estreitos
Entre as rochas escuras
E, aqui e além, os pinheiros
Magros e direitos.

Jardim do mar, do sol e do vento,
Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.

Jardim que a água chama e devora
Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.
Jardim onde o vento batalha
E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.

Sophia de Mello Breyner Andresen



03 julho 2012

ANDARILHOS



 

Lá fora as árvores tiritam
no coração dos pássaros

Tudo parece gelo
até o ladrar dos cães

mas quando afagamos uma pedra
abrimos a porta

o sol entra pé ante pé
e nós cantamos
baixinho
para não acordar o silêncio
nas paredes da casa

Andarilhos pela vida inteira
percorremos rotas indecifráveis
traços de luz
neste chão
que nos faz andar
e atear fogueiras

de: Eufrázio Filipe







01 julho 2012

"NO TEU DESERTO"


[...]
"Ali estavas tu, então, tão nova que parecias irreal, tão feliz que era quase impossível de imaginar. Ali estavas tu, exactamente como te tinha conhecido. [...]  como nunca mais te vi, ficaste assim para sempre, com aquela idade, com aquela felicidade, suspensa, eterna, desde o instante em que te apontei a minha Nikon e tu ficaste exposta, sem defesa, sem segredos, sem dissimulação alguma.
Foi ao terceiro dia da nossa viagem [...]


"Às vezes, lá onde moro,
fico à noite a olhar as estrelas como as do deserto
e oiço o tempo a passar,
mas não me angustia mais:
eu sei que é justo e que tudo o resto é falso."

de: Miguel de Sousa Tavares
[No Teu Deserto]
(quase romance)