E ACTUALISSIMO, ESTE ARTIGO, APESAR DE TER SIDO PUBLICADO EM 2010!
Francisco Sá Carneiro morreu há 30 anos no dia 4 de Dezembro
de 1980. Eu era ainda um petiz, mas lembro-me perfeitamente de estar nesse dia
à noite, de visita a casa de uma tia minha na Levada de Santa Luzia, onde a sua
televisão a preto e branco, tornara-se o centro das atenções de toda a família.
Na altura apenas com 11 anos, percebia que "aquele
senhor" do governo morrera de avião...Mais nada.
No último número da revista Visão(n.º 926 de 2 de Dezembro),
Miguel Carvalho assina um artigo interessantíssimo sobre Sá Carneiro e relembra
algumas frases proferidas pelo desaparecido Primeiro-Ministro, que eu
desconhecia, mesmo antes de eu militar no seu partido no final da década de
oitenta entre festejos de amigos, muito diferentes da profunda desilusão com
alguns adulteraram e traíram o seu ideal, apesar de invocarem o nome de Sá
Carneiro em todas as ocasiões...
Creio mesmo que Sá Carneiro não identificaria hoje o seu
legado neste Portugal dos nossos dias, sobretudo daqueles que de entre as suas
fileiras, ostentam a sua imagem nos núcleos partidários...
Eis, pois algumas das frases atribuídas a Francisco Sá
Carneiro:
«Se
nos demitirmos da intervenção activa, não passaremos de desportistas de
bancada, ou melhor, de políticos de café.» - 1.º discurso
político integrado na campanha para as eleições - Teatro Constantino Nery,
Matosinhos, 12 de Junho de 1969
«Somos
um povo conformista (...) Vamos aceitando tudo e procurando no verbalismo
dos colóquios a paz da boa consciência (...)» -
Expresso-«Visto»-Dezembro de 1973 (cortado pela censura e publicado a 4 de
Maio de 1974)
«Na
sua evolução para um sistema mais justo é necessário o continuado reforço
do poder dos trabalhadores na economia (...)» - Entrevista a
O Século - 6 de Junho de 1974
«Há
que impor uma disciplina de actuação do poder económico e dos
investimentos, para que ele seja feito com proveito para todos nós e não
apenas para os detentores desse poder» - Entrevista ao Diário
Popular - 8 de Julho de 1974
«Não
vejo como uma via neocapitalista ou neoliberal possa dar solução às graves
contradições e desigualdades com que se debate a sociedade portuguesa» -
Entrevista ao Século Ilustrado - 30 de Novembro de 1974
«Quem
tenha o mínimo de conhecimentos da história da humanidade ou esteja atento
ao panorama social em que vive, não pode evidentemente ignorar a luta de
classes» - Entrevista a A Capital - 21 de Junho de 1975
«O
povo português nunca teve os dirigentes que mereceu» -
Conferência de Imprensa - 28 de Novembro de 1975
«É
necessária uma política de austeridade. Mas impõe-se que essa política de
austeridade não recaia, especialmente, sobre as classes trabalhadoras
(...) É preciso que ela se integre numa política de relançamento da nossa
economia. Sem isto não há austeridade que valha a pena» -
Entrevista a O País - 3 de Março de 1976
«Não
me considero uma figura carismática, nem tão-pouco penso que essas figuras
sejam absolutamente essenciais. Antes pelo contrário (...)» -
Entrevista a A Luta - 23 de Abril de 1976
«Uma
Comunidade [Europeia] entendida como grupo de países ricos,
autosuficientes, divididos dos países menos desenvolvidos do Sul da
Europa, marcaria uma condenável divisão entre Norte e Sul (...)» -
Intervenção na A.R. - 10 de Novembro de 1977
«Numa
sociedade em regressão económica acentuada e em que o desemprego muito
alto se combina com uma alta inflação, é natural e justo que os
trabalhadores procurem assegurar a estabilidade dos seus empregos através
de um estatuto de protecção legal que impeça totalmente os despedimentos,
por exemplo, ou que dificulte de tal modo que lhes dê segurança.»
- Entrevista ao Jornal Novo - 23 de Fevereiro de 1977
«O
nosso Povo tem sempre correspondido, nas alturas de crise. As elites, as
chamadas elites, é que sempre o traíram (...)» - Discurso no
convívio do Vimieiro - 2 de Abril de 1978
«Gosto
demasiado da política para ser Presidente da República» -
Entrevista à revista Cambio - 4 de Dezembro de 1980 (dia da sua morte)
Todas estas frases recolhidas pelo Miguel Carvalho são quase
que visionárias a propósito da completa adulteração daquilo que Sá Carneiro
queria para os portugueses. O mais triste e até vil, é que aqueles que sempre o
invocam e pretendem sempre se colar ao ideário do antigo líder, são quase
sempre os mesmos que seguem um caminho diferente e contrário - como agora se
viu no recente acordo alcançado - que não só traem a sua memória, como
também o próprio Povo e os "Trabalhadores" (uma denominação arredada
do vocabulário tecnocrata da política moderna)...
II Olhou o pão na mesa e deixou cair as mãos como sementes para que tudo crescesse a partir do chão olhou o mar e viu as lágrimas das trevas iluminadas pelo firmamento depois sentiu que se fechasse os olhos por um pequeno instante tudo voltaria ao caos as mães têm as mãos grandes
[das clareiras dos bosques pag. 73]
VIII O poeta sabe como Deus transbordou do escuro e nasceu de uma nuvem de solidão e exílio [como respirou e dormiu e estendeu os braços ao longo dos rios] com árvores e ombros e mãos para lavrar o azul partiu-se em mil bocados. que neles ninguém se fira
[das sombras dos bosques pag. 63] Maria Azenha
amor é o olhar total, que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão só próprio e bastante, em si mesmo absoluto e táctil,
que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.
fui criança, indo por um carreiro, a caminho do mar, mão na outra mão, entre árvores, pedras, insectos e aves. toda a natureza me coube nas pupilas, mestra de sentimentos, e eu discípula. e, se fechava os olhos, ela punia-me com o silêncio cruel das ondas, a mudez imerecida dos insectos, e a distância das aves, que doía. se os abria, tudo me rodeava, apaziguado e meu, mas a mão que me trazia a mão puxava-me para a luz de cada dia.
Nem sempre se deve desconfiar das pessoas graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo, os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão depois. Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo dos pés e por isso do outro lado do mundo. O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés e mais longe ainda das mãos que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é. Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo que foram ou das pessoas que amaram. Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.
- com o coração, num sopro quente - de olhos nos olhos das feridas que não sabemos sarar - com sorrisos a escorrer ternura do olhar - num colo, num abraço, num gesto puro
da Plátano Editora
num carinhoso entrelaçar de mãos de vários jornalistas
A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40**
De: Irene Flunser Pimentel*
os autores deste livro, todos ligados à comunicação social, sensíveis à exclusão e ao sofrimento de imensas crianças, decidiram dar este pequeno contributo, esperançados em atenuar esse mundo doloroso e cheio de perguntas impossíveis de responder, porque não se explica a um inocente, a um abandonado, seja ele orfão, deficiente ou na plenitude das suas capacidades, o inexplicável.
forçados a conviver de perto com esta cruel realidade, com esta forma de guerra desumana, e quantas vezes escondida, que exige combater com carácter urgente, lançámo-nos pedagógicamente a este projecto. essas meninas e esses meninos indefesos, merecem que todos nós lhes proporcionemos coisas simples, como peças de roupa e brinquedos, e que as peguemos ao colo como se fossem nossos filhos.
obtida a adesão da Plátano Editora, faltava-nos encontrar uma instituição a quem doar os nossos direitos de autor. pairava no espírito de todos a ideia de o fazer junto de quem não usufruísse de apoios oficiais - apesar de sempre escassos -, tenham eles o rosto que tenham. feitas as pesquisas, por votação, a maioria fez recaír a opção numa organização que se dedica à recolha e apoio a crianças orfãs e de risco.
Não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação:
quero entender um pouco.
Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo.
O BEIJO É SÓ UMA PALAVRA ESCOLHIDA AO ACASO. O QUE AS TINTAS ENCOBREM E DESCOBREM E OS PINCEIS REVELAM, MAS NÃO NOMEIAM, É A ORDEM QUE SE PRESSENTE EM TODAS AS NEBULOSAS. QUE SEMPRE A ORDEM PRECEDE A DESORDEM. E ESSA É UMA DAS LEIS INDECLINÁVEIS DO AMOR. A SUA REGRA DE OURO, QUE NÃO ADMITE EXCEPÇÕES.
"o poema não tem mais que o som do seu sentido, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas, silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema calado, quem o pode negar?,que escreves sempre e sempre, em segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo. o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema porque a palavra poema é um palavra, o poema é a carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre os telhados na hora em que todos dormem, é a última lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança. o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido. "
... ana molhou uma toalha no alguidar e envolveu a mão do fugitivo
onde faltava o dedo médio e o indicador... na sua pele o sangue era mais claro
do que na toalha. na toalha, tinha a côr de um grito de sangue. na pele, era
como se fosse a memória do sangue.
... os olhos de ana não tinham idade e, quando reparou que os olhos daquele
homem também não tinham idade, o sangue parou de embeber a toalha.
quando chegou março,
nasceram flores nos campos.
debaixo da azinheira nasceu
uma única flor. era uma flor bravia
as raízes dessa flor
atravessavam a terra, eram
longas, e entravam dentro do
corpo do mudo. aquilo que
tinha sido a vida do mudo
entrava por essas raízes
e corria dentro dessa flor.
ninguém sabia, mas o mudo
era essa flor. continuava
mudo. as suas roupas pretas,
apodrecidas debaixo da terra,
eram pétalas brancas. os fios
da sua barba, misturados com
a terra, eram pétalas brancas.
a cadela, sem saber que ele
era uma flor, continuava
perdida pelas ruas da vila.
Se terminar este poema, partirás. Depois da mordedura vã do meu silêncio e das pedras que te atirei ao coração, a poesia é a última coincidência que nos une. Enquanto escrevo este poema, a mesma neblina que impede a memória límpida dos sonhos e confunde os navios ao retalharem um mar desconhecido
está dentro dos meus olhos – porque é difícil olhar para ti neste preciso instante sabendo que não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que
continuo a amar-te em surdina com essa inércia sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não beijos, porque o poema é o único refúgio onde podemos repetir o lume dos antigos encontros.
Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui, que apenas escreva até ao fim mais esta página (que, como as outras, será somente tua – esse
beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade nos faz adultos para sempre, sei que te perderei
em qualquer caso: se terminar o poema, partirás; e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á a última coincidência que nos une.
dobrar na boca o frio da espora
calcar o passo sobre lume
abrir o pão a golpes de machado
soltar pelo flanco os cavalos do espanto
fazer do corpo um barco e navegar a pedra
regressar devagar ao corpo morno
beber um outro vinho pisado por um astro
possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.
manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente e um retalho roxo de seda alucinante e mãos de prata ainda (se puderes) e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres) manda-me osíris no próximo crescente e um olho escancarado de loucura (em pentagrama, asas transparentes)
manda-me tudo pelo vento: envolto em nuvens, selado com estrelas tingido de arco-íris, molhado de infinito (lacrado de oriente, se encontrares)
Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-la não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas
quem - estando ausente - entra no quarto quem deita ao lado meu, quem passa no meu coração seus lábios quentes, quem desperta em mim as feras todas quem me rasga e cura quem me atrai? quem murmura na treva e acende estrelas quem me leva em marés de sono e riso quem invade meu dia após a noite quem vem – estando ausente - e nunca vai?
Principia a estação, com o seu ruído feito de sons de pássaros, que eu decifro. Mais difícil sinal são as cores várias, que despontam cada dia e eu vejo, ano após ano, iguais e singulares. Primeiro, um pouco além, o lírio roxo, que me traz consigo a criança viva que o colheu e, tal como a um barco, o fez singrar, só, roxo, macerado, na água que descia por um rego. Um lírio com a mão que o cortara já decepada e presa ao passado, sem o seu corpo. Vejo as três pétalas assim a confundir-se com os três dedos, como se as nossas mãos por vezes vivessem mais do que os passados corpos. Depois, foi esta a manhã das camélias brancas, cravadas com dureza em rostos, que, ainda de olhos fechados, tocam as corolas em busca do seu cheiro. São camélias mortais, e ainda atraem a face dos mortos, que algum dia as bafejaram com o seu hálito próximo. Manchas brancas de círculos informes, cada círculo contendo outro círculo. E, no centro de cada rosto, apenas, em cada Primavera, duram os olhos.
Já caem as glicínias, de alto, sobre o esplendor do crânio ou do cabelo. São cachos também roxos, em manhãs de assombro, por cada dia mais trazer um diverso cacho pendente. Misturam-se com a cabeleira antiga estes cachos de glicínias de hoje. Mas são absolutos, novos, singulares, os momentos com a sua luz e cor, os seus insectos e as suas sombras. Alguém que os colhera os fez pender entre cabelos fecundos, de orelhas, adornos para os filhos da Terra. Estão, depois dos lírios e das camélias, para salvar, em cada dia novo, o viço dos cabelos, mais eternos do que aja sepultada carne. Carne de alguém que tinha um nome seu e que se oferecia, com deleite, ao Tempo. Só pode ter sido a de parentes, dúbios coabitantes do ser que relata esta actual Primavera, com saudade. A Primavera, que me surpreende somente por estar a ser olhada.
Se aquela rosa rubra, na manhã em que surgiu, logo fosse ignorada, eu não estaria aqui neste papel, dando-me inteira à nova Primavera. Recebo-a, olho-a como um visitante, aliás porque, na sua latada, ela está perto do meu sólio. Rosa de repente vista, primeira rosa na natural frescura. E, também, o vento lhe tocou, e já a abrem aquelas mãos que haviam sabido lançar barcos de pétalas aqui. Junto da rosa só cabe esta boca, pronta a beijar com amor as suas línguas ou a beber a linfa que é da abelha. Havia uma boca assim, sem a face, a respirar ao ritmo dessa rosa, que hoje nasceu fadada para ser a sempre minha, única, igual. A cor da rosa mostra-me o lugar daquela boca, e eu quero sentir-me aqui e ali. Pois vejo-te, rosa, e vejo a outra, a que foi beijada. Assim, não posso mais do que olhar. Rosas terás em redor, solitária.
– Eis os melros, rasteiros, que insistem em tornar-se evidentes, saltitando sobre cômoros de terra. Mas hoje perante o mistério das flores súbitas, são como eu, embora não como eu, com a negra plumagem que os cobre. Sobre a laje do poço correm dois, negros contendores no mesmo sprint, músicos de assobio que eu bem entendo.
E, próximos da rosa, mas alheios, estão a nascer os narcisos, de amarelas frisadas campânulas e de sépalas perto do solo, que se elevam na luz de cor. Também uma figura de mulher genuflectida as colhia, e uma criança, oscilando no riso, quer ter para si uma flor solar. Junto aos eternos matizes das pedras, a cor dos narcisos, nítida, clara, evoca esses desejos saciados em tempo ido: o da mulher, prendendo-os no seu seio, e os da criança, seguindo o movimento que pertence ao tempo. Hoje, como hei-de separar os corpos da haste e da corola dos narcisos, pois a mancha amarela tem a forma humana contida em si, curva, erecta. Salva-me o vermelho vivo da rosa, que atrai a cor intensa dos narcisos para contraste, outra tensão, que eu revivo, amando o beijo da rosa e a prece ao sol destes narcisos. Mas outra prece, hesitante, desponta ao raso dos terrenos, dispersa, ágil. Flores que vibram esguias e tácteis, de um vermelho ardente, submissas como pálpebras, ao cair da noite. Abrem-se na aurora, comovidas pela unção da luz, porque se chamam páscoas. E são amadas, benditas. Anunciam a passagem eterna da luz sagrada entre noite e aurora. A aragem devagar as sacode, finas folhas e hastes a dançar, em pleno dia de êxtase, no sono das corolas exaustas pela noite.
Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada, a poalha da brancura florida que envolve os troncos velhos da ameixoeira, flores que o ar conhece e o vento leva, há muito, para lugares e tempos. Poalha em que não estão vultos humanos. Apenas um nó de sombra, atrás de cada flor, mostra a imagem de antes ou a espessura de um fruto futuro. São as flores do jardim que guardam o enigma, pois cada espécie vista tem em si um sinal visível de outra estação. Flores solitárias que, uma a uma, vêm ligar-se a fragmentos de vida antiga.
– Repetem-se os melros plo empedrado, a debicar sempre nas pedras húmidas, sob o fascínio do cálido dia. Tão nítidos, tão certos, a presença deles não cabe ao lado de uma flora rara, a desta Primavera em narração.
Também os loureiros em flor, visíveis ao longe como nuvens, são visões completas, com a floração e as folhas na mesma cor de sempre, indecifrável. Alguém pega no ramo do loureiro, num verso clássico, e o dá a toda a humanidade, pois a memória da poesia passa de poeta a poeta, para o mundo. Se o meu relato é vivo é porque olho c'os outros a Primavera, e nesta Primavera eu vi melhor, presa do assombro do que é novo e antigo. Os meus olhos, o espírito e as mãos pegam em cada imagem de uma flor, em cada dia de visão e ganho. Mas a perda, enfim, virá somar tudo igual a si mesmo, uno, passado. E, de repente, uma flor de palavras muito branca chega até mim, e é esta estação, nesse florir de goivos. Uma carta traz-me inscrita as palavras de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio. Esta transcreve-a ele de Pessanha, diante de tão nítidos canteiros. Grata, prendo-me a esses elos vivos da corrente de vozes, que se oferecem aos ouvintes, depois de recolherem o real, o findo, o que foi amado.
Aqui, depois do loureiro, floriu a acácia, também sem qualquer vulto escondido no seu florir imenso. São árvores solitárias, constantes na pura relação com a luz solar. E, talvez por fim, neste infinito, uma inflorescência de gladíolo rosada, erecta, se tenha aberto. Vem de um único bolbo, soterrado, está só, entre a verdura vária. Junto de si viveram outras hastes também de gladíolos, há muito tempo. Braços levaram-nas juntas, consigo, em braçadas de amor e de alegrias. Os braços são as linhas de matizes, unidas em redor da cor suavíssima das flores de hoje, a florir aqui. Cada manhã me põe diante dos olhos nova forma de cor e luz e, às vezes, figuras esbatidas de outra estação igual, porém perdida já, inane.
– Melro audaz, que te aproximas mais de mim, ou do que eu fui e agora sou, não vejas que eu represento o Tempo. A tua colheita de grãos e de larvas seja o teu mais subtil pensamento!
E, afinal, entraste no meu espaço, num intervalo entre o concreto e o abstracto.