quem - estando ausente - entra no quarto quem deita ao lado meu, quem passa no meu coração seus lábios quentes, quem desperta em mim as feras todas quem me rasga e cura quem me atrai? quem murmura na treva e acende estrelas quem me leva em marés de sono e riso quem invade meu dia após a noite quem vem – estando ausente - e nunca vai?
Principia a estação, com o seu ruído feito de sons de pássaros, que eu decifro. Mais difícil sinal são as cores várias, que despontam cada dia e eu vejo, ano após ano, iguais e singulares. Primeiro, um pouco além, o lírio roxo, que me traz consigo a criança viva que o colheu e, tal como a um barco, o fez singrar, só, roxo, macerado, na água que descia por um rego. Um lírio com a mão que o cortara já decepada e presa ao passado, sem o seu corpo. Vejo as três pétalas assim a confundir-se com os três dedos, como se as nossas mãos por vezes vivessem mais do que os passados corpos. Depois, foi esta a manhã das camélias brancas, cravadas com dureza em rostos, que, ainda de olhos fechados, tocam as corolas em busca do seu cheiro. São camélias mortais, e ainda atraem a face dos mortos, que algum dia as bafejaram com o seu hálito próximo. Manchas brancas de círculos informes, cada círculo contendo outro círculo. E, no centro de cada rosto, apenas, em cada Primavera, duram os olhos.
Já caem as glicínias, de alto, sobre o esplendor do crânio ou do cabelo. São cachos também roxos, em manhãs de assombro, por cada dia mais trazer um diverso cacho pendente. Misturam-se com a cabeleira antiga estes cachos de glicínias de hoje. Mas são absolutos, novos, singulares, os momentos com a sua luz e cor, os seus insectos e as suas sombras. Alguém que os colhera os fez pender entre cabelos fecundos, de orelhas, adornos para os filhos da Terra. Estão, depois dos lírios e das camélias, para salvar, em cada dia novo, o viço dos cabelos, mais eternos do que aja sepultada carne. Carne de alguém que tinha um nome seu e que se oferecia, com deleite, ao Tempo. Só pode ter sido a de parentes, dúbios coabitantes do ser que relata esta actual Primavera, com saudade. A Primavera, que me surpreende somente por estar a ser olhada.
Se aquela rosa rubra, na manhã em que surgiu, logo fosse ignorada, eu não estaria aqui neste papel, dando-me inteira à nova Primavera. Recebo-a, olho-a como um visitante, aliás porque, na sua latada, ela está perto do meu sólio. Rosa de repente vista, primeira rosa na natural frescura. E, também, o vento lhe tocou, e já a abrem aquelas mãos que haviam sabido lançar barcos de pétalas aqui. Junto da rosa só cabe esta boca, pronta a beijar com amor as suas línguas ou a beber a linfa que é da abelha. Havia uma boca assim, sem a face, a respirar ao ritmo dessa rosa, que hoje nasceu fadada para ser a sempre minha, única, igual. A cor da rosa mostra-me o lugar daquela boca, e eu quero sentir-me aqui e ali. Pois vejo-te, rosa, e vejo a outra, a que foi beijada. Assim, não posso mais do que olhar. Rosas terás em redor, solitária.
– Eis os melros, rasteiros, que insistem em tornar-se evidentes, saltitando sobre cômoros de terra. Mas hoje perante o mistério das flores súbitas, são como eu, embora não como eu, com a negra plumagem que os cobre. Sobre a laje do poço correm dois, negros contendores no mesmo sprint, músicos de assobio que eu bem entendo.
E, próximos da rosa, mas alheios, estão a nascer os narcisos, de amarelas frisadas campânulas e de sépalas perto do solo, que se elevam na luz de cor. Também uma figura de mulher genuflectida as colhia, e uma criança, oscilando no riso, quer ter para si uma flor solar. Junto aos eternos matizes das pedras, a cor dos narcisos, nítida, clara, evoca esses desejos saciados em tempo ido: o da mulher, prendendo-os no seu seio, e os da criança, seguindo o movimento que pertence ao tempo. Hoje, como hei-de separar os corpos da haste e da corola dos narcisos, pois a mancha amarela tem a forma humana contida em si, curva, erecta. Salva-me o vermelho vivo da rosa, que atrai a cor intensa dos narcisos para contraste, outra tensão, que eu revivo, amando o beijo da rosa e a prece ao sol destes narcisos. Mas outra prece, hesitante, desponta ao raso dos terrenos, dispersa, ágil. Flores que vibram esguias e tácteis, de um vermelho ardente, submissas como pálpebras, ao cair da noite. Abrem-se na aurora, comovidas pela unção da luz, porque se chamam páscoas. E são amadas, benditas. Anunciam a passagem eterna da luz sagrada entre noite e aurora. A aragem devagar as sacode, finas folhas e hastes a dançar, em pleno dia de êxtase, no sono das corolas exaustas pela noite.
Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada, a poalha da brancura florida que envolve os troncos velhos da ameixoeira, flores que o ar conhece e o vento leva, há muito, para lugares e tempos. Poalha em que não estão vultos humanos. Apenas um nó de sombra, atrás de cada flor, mostra a imagem de antes ou a espessura de um fruto futuro. São as flores do jardim que guardam o enigma, pois cada espécie vista tem em si um sinal visível de outra estação. Flores solitárias que, uma a uma, vêm ligar-se a fragmentos de vida antiga.
– Repetem-se os melros plo empedrado, a debicar sempre nas pedras húmidas, sob o fascínio do cálido dia. Tão nítidos, tão certos, a presença deles não cabe ao lado de uma flora rara, a desta Primavera em narração.
Também os loureiros em flor, visíveis ao longe como nuvens, são visões completas, com a floração e as folhas na mesma cor de sempre, indecifrável. Alguém pega no ramo do loureiro, num verso clássico, e o dá a toda a humanidade, pois a memória da poesia passa de poeta a poeta, para o mundo. Se o meu relato é vivo é porque olho c'os outros a Primavera, e nesta Primavera eu vi melhor, presa do assombro do que é novo e antigo. Os meus olhos, o espírito e as mãos pegam em cada imagem de uma flor, em cada dia de visão e ganho. Mas a perda, enfim, virá somar tudo igual a si mesmo, uno, passado. E, de repente, uma flor de palavras muito branca chega até mim, e é esta estação, nesse florir de goivos. Uma carta traz-me inscrita as palavras de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio. Esta transcreve-a ele de Pessanha, diante de tão nítidos canteiros. Grata, prendo-me a esses elos vivos da corrente de vozes, que se oferecem aos ouvintes, depois de recolherem o real, o findo, o que foi amado.
Aqui, depois do loureiro, floriu a acácia, também sem qualquer vulto escondido no seu florir imenso. São árvores solitárias, constantes na pura relação com a luz solar. E, talvez por fim, neste infinito, uma inflorescência de gladíolo rosada, erecta, se tenha aberto. Vem de um único bolbo, soterrado, está só, entre a verdura vária. Junto de si viveram outras hastes também de gladíolos, há muito tempo. Braços levaram-nas juntas, consigo, em braçadas de amor e de alegrias. Os braços são as linhas de matizes, unidas em redor da cor suavíssima das flores de hoje, a florir aqui. Cada manhã me põe diante dos olhos nova forma de cor e luz e, às vezes, figuras esbatidas de outra estação igual, porém perdida já, inane.
– Melro audaz, que te aproximas mais de mim, ou do que eu fui e agora sou, não vejas que eu represento o Tempo. A tua colheita de grãos e de larvas seja o teu mais subtil pensamento!
E, afinal, entraste no meu espaço, num intervalo entre o concreto e o abstracto.
Sentavas-te ao piano e tocavas Chopin enquanto eu não chegava. Era a missa pagã das luminosas tardes com que a Primavera nos acordava ao fim da invernosa espera. À margem do caminho as pedras rebentavam em frágeis flores, como se as teclas que tocavam os teus dedos de súbito achassem maneira de dizer que me esperavas, inocente e inteira.
de: Torquato da Luz
poeta, pintor e um querido amigo
deixou-nos hoje
leva contigo o meu sentido abraço de saudade
estarás sempre entre nós, Torquato
nota: com a devida licença de Torquato da Luz, este poema, bem como o vídeo que o acompanha, foi o primeiro que publiquei deste autor, que muito aprecio, razão de estarem hoje aqui, com todo o carinho e respeito que o Poeta me merece.
Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te no sossego feliz das folhas e das sombras. Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa. Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes. Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.
O que procuro é um coração pequeno, um animal perfeito e suave. Um fruto repousado, uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado, uma pergunta que não ouvi no inanimado, um arabesco talvez de mágica leveza.
Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma? Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore. As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos. O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu, o grande sopro imóvel da primavera efémera. António Ramos Rosa Volante Verde - 1986
06 março 2013
também este silêncio está como que ausente
quando recomeço a leitura dos teus lábios.
aqui, no limiar da pele, sou a única palavra
que arde em ti uma língua cheia de cantos e silêncios.