31 março 2013

CANÇÃO DESSE RUMOR

 


quem - estando ausente - entra no quarto
 quem deita ao lado meu, quem passa
 no meu coração seus lábios quentes, quem
 desperta em mim as feras todas
 quem me rasga e cura
 quem me atrai?


 quem murmura na treva e acende estrelas
 quem me leva em marés de sono e riso
 quem invade meu dia após a noite
 quem vem – estando ausente -
 e nunca vai?
 
Lya Luft
 
 
 
 
 

29 março 2013

CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA

 

 
Principia a estação, com o seu ruído
feito de sons de pássaros, que eu decifro.
Mais difícil sinal são as cores várias,
que despontam cada dia e eu vejo,
ano após ano, iguais e singulares.
Primeiro, um pouco além, o lírio roxo,
que me traz consigo a criança viva
que o colheu e, tal como a um barco,
o fez singrar, só, roxo, macerado,
na água que descia por um rego.
Um lírio com a mão que o cortara
já decepada e presa ao passado,
sem o seu corpo. Vejo as três pétalas
assim a confundir-se com os três dedos,
como se as nossas mãos por vezes vivessem
mais do que os passados corpos.
Depois, foi esta a manhã das camélias
brancas, cravadas com dureza em rostos,
que, ainda de olhos fechados, tocam
as corolas em busca do seu cheiro.
São camélias mortais, e ainda atraem
a face dos mortos, que algum dia
as bafejaram com o seu hálito próximo.
Manchas brancas de círculos informes,
cada círculo contendo outro círculo.
E, no centro de cada rosto, apenas,
em cada Primavera, duram os olhos.

Já caem as glicínias, de alto, sobre
o esplendor do crânio ou do cabelo.
São cachos também roxos, em manhãs
de assombro, por cada dia mais
trazer um diverso cacho pendente.
Misturam-se com a cabeleira antiga
estes cachos de glicínias de hoje.
Mas são absolutos, novos, singulares,
os momentos com a sua luz e cor,
os seus insectos e as suas sombras.
Alguém que os colhera os fez pender
entre cabelos fecundos, de orelhas,
adornos para os filhos da Terra.
Estão, depois dos lírios e das camélias,
para salvar, em cada dia novo,
o viço dos cabelos, mais eternos
do que aja sepultada carne. Carne
de alguém que tinha um nome seu e que
se oferecia, com deleite, ao Tempo.
Só pode ter sido a de parentes, dúbios
coabitantes do ser que relata
esta actual Primavera, com saudade.
A Primavera, que me surpreende
somente por estar a ser olhada.

Se aquela rosa rubra, na manhã
em que surgiu, logo fosse ignorada,
eu não estaria aqui neste papel,
dando-me inteira à nova Primavera.
Recebo-a, olho-a como um visitante,
aliás porque, na sua latada,
ela está perto do meu sólio. Rosa
de repente vista, primeira rosa
na natural frescura. E, também,
o vento lhe tocou, e já a abrem
aquelas mãos que haviam sabido
lançar barcos de pétalas aqui.
Junto da rosa só cabe esta boca,
pronta a beijar com amor as suas línguas
ou a beber a linfa que é da abelha.
Havia uma boca assim, sem a face,
a respirar ao ritmo dessa rosa,
que hoje nasceu fadada para ser
a sempre minha, única, igual.
A cor da rosa mostra-me o lugar
daquela boca, e eu quero sentir-me
aqui e ali. Pois vejo-te, rosa,
e vejo a outra, a que foi beijada.
Assim, não posso mais do que olhar.
Rosas terás em redor, solitária.

– Eis os melros, rasteiros, que insistem
em tornar-se evidentes, saltitando
sobre cômoros de terra. Mas hoje
perante o mistério das flores súbitas,
são como eu, embora não como eu,
com a negra plumagem que os cobre.
Sobre a laje do poço correm dois,
negros contendores no mesmo sprint,
músicos de assobio que eu bem entendo.

E, próximos da rosa, mas alheios,
estão a nascer os narcisos, de amarelas
frisadas campânulas e de sépalas
perto do solo, que se elevam
na luz de cor. Também uma figura
de mulher genuflectida as colhia,
e uma criança, oscilando no riso,
quer ter para si uma flor solar.
Junto aos eternos matizes das pedras,
a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
Salva-me o vermelho vivo da rosa,
que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensão,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.
Mas outra prece, hesitante, desponta
ao raso dos terrenos, dispersa, ágil.
Flores que vibram esguias e tácteis,
de um vermelho ardente, submissas
como pálpebras, ao cair da noite.
Abrem-se na aurora, comovidas
pela unção da luz, porque se chamam
páscoas. E são amadas, benditas.
Anunciam a passagem eterna
da luz sagrada entre noite e aurora.
A aragem devagar as sacode,
finas folhas e hastes a dançar,
em pleno dia de êxtase, no sono
das corolas exaustas pela noite.

Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,
a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou a espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitárias que, uma a uma, vêm
ligar-se a fragmentos de vida antiga.

– Repetem-se os melros plo empedrado,
a debicar sempre nas pedras húmidas,
sob o fascínio do cálido dia.
Tão nítidos, tão certos, a presença deles
não cabe ao lado de uma flora rara,
a desta Primavera em narração.

Também os loureiros em flor, visíveis
ao longe como nuvens, são visões
completas, com a floração e as folhas
na mesma cor de sempre, indecifrável.
Alguém pega no ramo do loureiro,
num verso clássico, e o dá a toda
a humanidade, pois a memória
da poesia passa de poeta a poeta,
para o mundo. Se o meu relato é vivo
é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.
Mas a perda, enfim, virá somar tudo
igual a si mesmo, uno, passado.
E, de repente, uma flor de palavras
muito branca chega até mim, e é
esta estação, nesse florir de goivos.
Uma carta traz-me inscrita as palavras
de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio.
Esta transcreve-a ele de Pessanha,
diante de tão nítidos canteiros.
Grata, prendo-me a esses elos vivos
da corrente de vozes, que se oferecem
aos ouvintes, depois de recolherem
o real, o findo, o que foi amado.

Aqui, depois do loureiro, floriu
a acácia, também sem qualquer vulto
escondido no seu florir imenso.
São árvores solitárias, constantes
na pura relação com a luz solar.
E, talvez por fim, neste infinito,
uma inflorescência de gladíolo
rosada, erecta, se tenha aberto.
Vem de um único bolbo, soterrado,
está só, entre a verdura vária.
Junto de si viveram outras hastes
também de gladíolos, há muito tempo.
Braços levaram-nas juntas, consigo,
em braçadas de amor e de alegrias.
Os braços são as linhas de matizes,
unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes,
figuras esbatidas de outra estação
igual, porém perdida já, inane.

– Melro audaz, que te aproximas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento!

E, afinal, entraste no meu espaço,
num intervalo entre o concreto e o abstracto.
 
Fiama Hasse Pais Brandão
[cenas vivas] 
 
 
 
 
 
 

25 março 2013

TORQUATO DA LUZ





AO PIANO
Sentavas-te ao piano e tocavas Chopin
enquanto eu não chegava. Era a missa pagã
das luminosas tardes com que a Primavera
nos acordava ao fim da invernosa espera.
À margem do caminho as pedras rebentavam
em frágeis flores, como se as teclas que tocavam
os teus dedos de súbito achassem maneira
de dizer que me esperavas, inocente e inteira
.


de: Torquato da Luz



poeta, pintor e um querido amigo
deixou-nos hoje
leva contigo o meu sentido abraço de saudade
estarás sempre entre nós, Torquato


nota: com a devida licença de Torquato da Luz, este poema, bem como o vídeo que o acompanha, foi o primeiro que publiquei deste autor, que muito aprecio, razão de estarem hoje aqui, com todo o carinho e respeito que o Poeta me merece.
foi em 3 de janeiro de 2011.

publicado em "decifrar ou traduzir"





17 março 2013

BOTSWANA




as árvores têm a idade das rochas
as rochas têm a idade da terra
no Botswana é possível contemplar a criação do mundo
ou o dia seguinte à criação do mundo
o primeiro dia

quando o guarda flortestal desliga a chave na ignição do jipe
existe o silêncio absoluto

o silêncio
imenso
permanece sobre nós

oceâno que flutua
suspenso sobre nós

há uma voz que nos fala baixinho
dentro do nosso peito ou em todos os lugares do mundo
e o sol começa a descer
a pique
vertiginosamente
ninguém pode pará-lo

o horizonte incendeia-se

a música nasceu num momento assim

[...]

o meu coração bate
sim
as árvores têm a idade das rochas
as rochas têm a idade da terra
a terra tem a idade da noite

o mundo inteiro está coberto por estrelas

de: José Luís Peixoto [Botswana]



11 março 2013

FOI HÁ UM ANO QUE O VENTO NASCEU, COM O FOGO E A ÁGUA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA!

 
 
desenho de António Ramos Rosa
 

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

 O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

 Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.


 António Ramos Rosa
Volante Verde - 1986
 
 
 

 

06 março 2013

 
 
 
 
também este silêncio está como que ausente
quando recomeço a leitura dos teus lábios.
aqui, no limiar da pele, sou a única palavra
que arde em ti uma língua cheia de cantos e silêncios.
o poema és sempre tu:
corpo de luz frutífera
árvore acolhedora no peito das palavras.
 
linguagem devorante em fuga
sobre um invisível caminho.
 
Fernando Esteves Pinto