29 dezembro 2013

FELIZ ANO NOVO!



imagem da net


Procuro um texto impossível,
um outro caminho para a salvação.

Procuro a palavra que nos una definitivamente, o poema
escrito no barro da alucinação, a palavra que cresce da terra
e atinge a noite com pancadas de luminosa alegria.

Procuro o teu rosto, a chave do segredo inviolável, a súbita
haste de uma flor com o teu nome, lírio, lume, lucerna, a pressão
sobre a página que vem reabilitar
a memória de que somos feitos.

Procuro os teus lábios, a cálida gruta
das tuas mãos, a árvore da vida, lágrima
e luz transgredindo o trajecto entre uma ausência e outra,
murmúrio e estremecimento.

Procuro os teus olhos, procuro a profundidade dos teus olhos,
a euforia que vive no fundo dos teus olhos, os íntimos
sinais de selvagem serenidade
com que recebes quem te olha nos olhos, a ternura,
a violenta ternura dos teus olhos.

Procuro o espaço onde prolongar o sonho para além da manhã,
o rio subterrâneo que exorciza o abismo, a ave
que grita entre as ravinas das trevas, o esplendor
da planície, a chuva
áugure.

Um barco ou uma pedra,
procuro.

de: Amadeu Baptista





22 dezembro 2013

NATAL E NÃO DEZEMBRO





Entremos, apressados, friorentos, 
numa gruta, no bojo de um navio, 
num presépio, num prédio, num presídio 
no prédio que amanhã for demolido... 
Entremos, inseguros, mas entremos. 
Entremos e depressa, em qualquer sítio, 
porque esta noite chama-se Dezembro, 
porque sofremos, porque temos frio. 

Entremos, dois a dois: somos duzentos, 
duzentos mil, doze milhões de nada. 
Procuremos o rastro de uma casa, 
a cave, a gruta, o sulco de uma nave... 
Entremos, despojados, mas entremos. 
De mãos dadas talvez o fogo nasça, 
talvez seja Natal e não Dezembro, 
talvez universal a consoada.

David Mourão Ferreira










10 dezembro 2013

PARTES DE UM TODO




Duy Huynh


Esta tarde, sentado no banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.

Luís Filipe Parrado

edição DOCUMENTA
[poesia escolhida em 2011]








04 dezembro 2013

FRANCISCO DE SÁ CARNEIRO


AINDA ESTÁ VIVO NAS NOSSAS MEMÓRIAS



E ACTUALISSIMO, ESTE ARTIGO, APESAR DE TER SIDO PUBLICADO EM 2010! 

Francisco Sá Carneiro morreu há 30 anos no dia 4 de Dezembro de 1980. Eu era ainda um petiz, mas lembro-me perfeitamente de estar nesse dia à noite, de visita a casa de uma tia minha na Levada de Santa Luzia, onde a sua televisão a preto e branco, tornara-se o centro das atenções de toda a família.
Na altura apenas com 11 anos, percebia que "aquele senhor" do governo morrera de avião...Mais nada.
No último número da revista Visão(n.º 926 de 2 de Dezembro), Miguel Carvalho assina um artigo interessantíssimo sobre Sá Carneiro e relembra algumas frases proferidas pelo desaparecido Primeiro-Ministro, que eu desconhecia, mesmo antes de eu militar no seu partido no final da década de oitenta entre festejos de amigos, muito diferentes da profunda desilusão com alguns adulteraram e traíram o seu ideal, apesar de invocarem o nome de Sá Carneiro em todas as ocasiões...
Creio mesmo que Sá Carneiro não identificaria hoje o seu legado neste Portugal dos nossos dias, sobretudo daqueles que de entre as suas fileiras, ostentam a sua imagem nos núcleos partidários...
Eis, pois algumas das frases atribuídas a Francisco Sá Carneiro:

  • «Se nos demitirmos da intervenção activa, não passaremos de desportistas de bancada, ou melhor, de políticos de café.» - 1.º discurso político integrado na campanha para as eleições - Teatro Constantino Nery, Matosinhos, 12 de Junho de 1969
  • «Somos um povo conformista (...) Vamos aceitando tudo e procurando no verbalismo dos colóquios a paz da boa consciência (...)» - Expresso-«Visto»-Dezembro de 1973 (cortado pela censura e publicado a 4 de Maio de 1974)
  • «Na sua evolução para um sistema mais justo é necessário o continuado reforço do poder dos trabalhadores na economia (...)» - Entrevista a O Século - 6 de Junho de 1974
  • «Há que impor uma disciplina de actuação do poder económico e dos investimentos, para que ele seja feito com proveito para todos nós e não apenas para os detentores desse poder» - Entrevista ao Diário Popular - 8 de Julho de 1974
  • «Não vejo como uma via neocapitalista ou neoliberal possa dar solução às graves contradições e desigualdades com que se debate a sociedade portuguesa» - Entrevista ao Século Ilustrado - 30 de Novembro de 1974
  • «Quem tenha o mínimo de conhecimentos da história da humanidade ou esteja atento ao panorama social em que vive, não pode evidentemente ignorar a luta de classes» - Entrevista a A Capital - 21 de Junho de 1975
  • «O povo português nunca teve os dirigentes que mereceu» - Conferência de Imprensa - 28 de Novembro de 1975
  • «É necessária uma política de austeridade. Mas impõe-se que essa política de austeridade não recaia, especialmente, sobre as classes trabalhadoras (...) É preciso que ela se integre numa política de relançamento da nossa economia. Sem isto não há austeridade que valha a pena» - Entrevista a O País - 3 de Março de 1976
  • «Não me considero uma figura carismática, nem tão-pouco penso que essas figuras sejam absolutamente essenciais. Antes pelo contrário (...)» - Entrevista a A Luta - 23 de Abril de 1976
  • «Uma Comunidade [Europeia] entendida como grupo de países ricos, autosuficientes, divididos dos países menos desenvolvidos do Sul da Europa, marcaria uma condenável divisão entre Norte e Sul (...)» - Intervenção na A.R. - 10 de Novembro de 1977
  • «Numa sociedade em regressão económica acentuada e em que o desemprego muito alto se combina com uma alta inflação, é natural e justo que os trabalhadores procurem assegurar a estabilidade dos seus empregos através de um estatuto de protecção legal que impeça totalmente os despedimentos, por exemplo, ou que dificulte de tal modo que lhes dê segurança.» - Entrevista ao Jornal Novo - 23 de Fevereiro de 1977
  • «O nosso Povo tem sempre correspondido, nas alturas de crise. As elites, as chamadas elites, é que sempre o traíram (...)» - Discurso no convívio do Vimieiro - 2 de Abril de 1978
  • «Gosto demasiado da política para ser Presidente da República» - Entrevista à revista Cambio - 4 de Dezembro de 1980 (dia da sua morte)
Todas estas frases recolhidas pelo Miguel Carvalho são quase que visionárias a propósito da completa adulteração daquilo que Sá Carneiro queria para os portugueses. O mais triste e até vil, é que aqueles que sempre o invocam e pretendem sempre se colar ao ideário do antigo líder, são quase sempre os mesmos que seguem um caminho diferente e contrário - como agora se viu no recente acordo alcançado - que não só traem a sua memória, como também o próprio Povo e os "Trabalhadores" (uma denominação arredada do vocabulário tecnocrata da política moderna)...