30 janeiro 2014

CANTO DOS MEUS PÉS





[...]

também os sentimentos são percursos
que me arrastam entre a alegria e a dor
e, do canto ao silêncio, os meus passos
levaram-me ao escutar das outras vozes.

do amor porque os astros giram
aceito o testemunho em Dante
e do amor do corpo e alma patentes
amei algum leitor mas tarda o uno.

o meu lar funda-se na ideia
do Paraíso perdido tão literária
onde se chega nesta vida infinda
indo pelo atalho a par e passo.

tamarindos encheram o meu caminho
tão cedo junto ao mar em confusão,
vejo as bagas rolarem na ressaca
e as pegadas perderem-se no encalço.

sou a que sente a paisagem
como uma casa duradoura e frágil
e nela envolvo os ombros até a névoa
chegar e me deixar ao abandono.

cumpro por meus pés infirmes
a peregrinação que me foi mandada
por ter perdido a Terra e sentir saudade
até ao grande encontro das estrelas negras.

Fiama Hasse Pais Brandão
in: "ÂMAGO Antologia"

Assírio & Alvim


Fiama





20 janeiro 2014

OIÇO OS MURMÚRIOS DO SOL



Vladimir Kush

"oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
o que eu amo está perto entre a terra e o ar."

de: António Ramos Rosa
in "o obscuro"








14 janeiro 2014





abriu no peito um vale para deixar correr o rio do coração
bebeu pela taça dos lírios o pólen exíguo da neblina
semeou nas janelas do aposento partes do corpo:
a boca, o estômago, os pés, os ramos dos dedos
que suportavam infatigáveis navios
e iam e vinham dos espelhos e regressavam do mar como cedros a
pique

pequenas ondas espalhadas pelo chão do quarto
erguiam-se e cantavam. eram tecidas por uma aranha azul.

de: Maria Azenha




11 janeiro 2014

"A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA"



dentro de nós há uma coisa que não tem nome,
essa coisa é o que somos [José Saramago]



Dalí pretendeu expressar a angustia do controle do tempo e da vida. Dizia ele que, sem a ditadura do relógio, os humanos teriam a capacidade de saborear a eternidade, libertando-se dos ditames viciosos que regulam o mundo. Seríamos como os animais, plenos de instinto, desconfiando jamais da existência da própria morte. [...] Dalí diz ter idealizado relógios a derreterem tal e qual o camembert preguiçoso da mesa do almoço. Como se o tempo fosse também ele ductil e macio.

[...]
Dalí: "crês que daqui a três anos te terás esquecido desta imagem?" 
Gala: "é impossivel esquecer mesmo para quem tenha observado uma só vez."

[...] a memória é muito mais importante do que o mito do coração, porque ela é tudo o que somos. Só somos verdadeiramente nós se vistos da janela da memória, é ela que nos define a razão, a emoção, o orgulho ou a culpa. 
[...] a memória é a nossa verdade sem tempo. Sabemos o que é certo ou errado porque essa noção reside algures inculcada dentro de nós. - Com a paixão e o amor é a mesma coisa - é invariavelmente pela recordação que o coração bate mais forte.

[...] nós somos muito do que esquecemos [...] não há vida sem memória.

Daniel Oliveira
in: A Persistência da Memória