18 fevereiro 2015

O MAR





se lançassem de uma só vez ao mar
as cinzas de todos os mortos
que vagam pelas brumas da História,
digo que nem toda essa cinza
unânime alteraria
o seu contínuo fluir:
o leve marulhar rude
ou as lendas graves da sua ira.

errabundo e cativo, mas sempre
com uma ordem
perfeita: misteriosa e calculada,

ouve-o como brama:
o mar bêbado pelas luas,
homérico, mutável, mecânico,
com frotas de peixes
de olhos aterrados que o exploram
como os pensativos peixes coloridos
exploram uma vez e outra e outra vez ainda
o aquário cheio de palmeiras
e tesouros em miniatura de piratas.

flutuante como o pensamento,
olha-o,
angustiado de azul indefinível,
asmático, grandioso e teatral,
ele,
que recua e invade
segundo um raro método que tem
algo a ver quiçá com os nossos ciclos
de razão e loucura, as duas faces
de uma moeda que nunca cai direita.

refúgio de seres silenciosos,
inesgotável mar de vaivém de espuma,
tão dado a todo o tipo de metáforas
que sucede às vezes lembrarem-nos
o muito que somos parecidos ao mar.

de: Felipe Benitez Reyes







09 fevereiro 2015



                 

   ACORDE
   onde passou o vento
    são altas as ervas,
    e os olhos água
   só de olhar para elas.

  de: Eugénio de Andrade
  [Primeiros Poemas]


  




01 fevereiro 2015

TEORIA DO ENIGMA




há um sentido subjacente ao que escrevo,
a que nenhuma decifração pode restituir
a leitura. não digo que seja secreto, que tenha nascido
de um desejo de ocultar o que é visível, tal
como nenhuma peneira pode esconder o sol. o
que acontece é que ele não se encontra nos dicionários,
não se descobre em listas de sinónimos, e nenhum tradutor
irá descobrir outro vocabulário mais claro
para dizer o que está dito, mesmo que não seja
compreensível para quem procura, na letra,
o que só o espírito conhece. porém não me refiro
à metafísica. a gramática, na sua textura mais simples,
limita-se a transmitir o que é dito para ser assim,
neste movimento mecânico que nos obriga a atribuir
uma significação imediata às palavras. Depois
há uma outra música, que nasce daquilo que, para uns,
se chama a sugestão, e outros interpretam como
o sopro divino. nem uma nem o outro me interessam. o
sentido és tu, na perfeição absoluta com que o som e a imagem
se juntam, para que nada os separe. podem abrir
os tratados de interpretação; ouvir os sábios; discutir
teorias. esta verdade é minha; e quando te encontro,
sob o sentido do que digo, todo o poema
está explicado.

de: Nuno Júdice